Em Veneza existe uma
região chamada Ghetto, era uma área onde, na Idade Média havia uma forjaria com
esse nome e que depois foi sendo ocupada pela comunidade judaica. A partir daí
esse nome passou a designar as regiões de judeus nas cidades europeias, depois
passou a significar qualquer local de ajuntamento de minorias étnicas ou
sociais. Atravessando o Campo di Ghetto Nuovo, vejo judeus ortodoxos com suas
roupas tradicionais. Claro que muitas coisas passam em minha cabeça, mas a
primeira é: será que Shylock, personagem de “O Mercador de Veneza” de
Shakespeare viveu por ali? Andamos mais um pouco por uma Fondamenta, algumas
pontes adiante, está o Campo dei Mori, com seus mouros de pedra do século XII
representando comércio de seda. Mais uma vez Shakespeare me vem à lembrança com
“Otelo, o mouro de Veneza”. No Grande Canal ainda existe o que seria a casa de
Desdêmona e sua família, já que ela era filha de um dos Doges.
Minha imaginação não
resiste a fazer algumas conexões. Alguns pesquisadores da vida do bardo inglês,
dizem que ele viveu na Itália por pelo menos uns seis anos, por isso tem
algumas peças que acontecem lá. Outros pesquisadores italianos dizem que ele,
na verdade, seria italiano da Sicília, mais precisamente de Messina, cenário de
“Muito Barulho para Nada”. Mas, a despeito da vontade dos italianos o mais
provável e mais documentado é que Shakespeare tenha nascido e vivido mesmo na
Inglaterra elisabetana, quando os ingleses se lançaram ao mar para fazer frente
aos espanhóis e portugueses que, fugindo das bem protegidas rotas venezianas
estavam chegando ao oriente contornando a África e criando um novo mercado.
Neste período também viveu na Inglaterra Francis Drake, que alguns estudiosos
afirmam que era filho bastardo da Rainha Elizabeth. Independente disso Drake
era um corsário da coroa inglesa que vivia a saquear os navios que iam do Novo
Mundo para a Europa, descobriu um caminho alternativo ao Estreito de Magalhães
para contornar as Américas, chamado até hoje de Estreito de Drake, mas morreu
de diarreia em frente ao que hoje é a Costa Rica. Diz a lenda que seu corpo
colocado em uma armadura de ouro e lançado ao mar. Entre seus feitos nem tão
heroicos assim está o saque à cidade espanhola de Cádiz, onde destruiu um parte
considerável da frota espanhola, permitindo que um ano depois vencesse a “Invencível
Armada Espanhola”. Essa cidade espanhola tem uma história riquíssima que vem
desde os fenícios, cartagineses, romanos, visigodos, árabes e cristãos. Foi
dela que o genovês Cristóvão Colombo partiu para descobrir o Novo Mundo.
Bom, Gênova era uma
República e tinha a Sereníssima Republica de Veneza como sua principal inimiga.
Seus conflitos comerciais foram resolvidos em diversas guerras. Genova tinha
como parte de seu território a ilha da Córsega que foi perdida para a França em
1768. Por uma dessas ironias do destino, um ano depois, já sendo território
francês, lá nasceu Napoleão Bonaparte que mais tarde acabaria com a
independência genovesa, tendo sido ela francesa, depois parte do reino da
Sardenha e finalmente italiana no final do século XIX quando da unificação da
Itália. Bonaparte também conquistou Veneza, de onde levou os cavalos da fachada
da Igreja de São Marcos para Paris, onde foram colocados no Arco do Carrousel
que fica em frente ao Louvre, no Jardin des Tuileries e que celebra suas
conquistas. Mais tarde foram devolvidos, quando da reunificação italiana. Mas
esses cavalos já tinham sido objeto de saque, quando Veneza financiou a Quarta
Cruzada e em troca do dinheiro pediu dois favorzinhos: conquistar a cidade de
Zara, na Dalmácia que poderia vir a ser uma concorrente e saquear Constantinopla,
capital do Império Romano do Oriente, com quem tinha algumas contas a acertar. Os
cruzados da Quarta Cruzada nunca chegaram à Terra Santa... Os cavalos estavam em
Constantinopla, para onde tinham sido levados por Constantino, tirados do Arco
de Trajano em Roma, sendo que Trajano já os havia trazido da Grécia como saque,
em uma de suas campanhas militares.
Bom... Trajano foi o primeiro imperador que
não nascera em Roma, mas na então província da Hispânia, no que é hoje a
Andaluzia, na Espanha. Essa região espanhola mostra até hoje sua forte
influência árabe, na arquitetura e na música e é de lá que vem o personagem
Cardênio, louco de amor – abandonado pela mulher amada e traído pelo melhor
amigo, encontrado por Dom Quixote de La Mancha, vagando pela Sierra Morena, no
romance de Miguel de Cervantes. Este personagem influenciou uma das peças de
Shakespeare com o mesmo nome, que ficou perdida por 300 anos e só foi
encontrada agora em 2010. Impressionante é que Cervantes e Shakespeare morreram
no mesmo dia: 22 de abril de 1616.
Deixamos os mouros do
Campo dei Mori para trás e vamos pelo becos de Veneza até a praça de São Marcos...
Afinal a história é comprida!